terça-feira, 29 de maio de 2012

Mulheres quilombolas: gênero, modo de vida e sustentabilidade

Com o intuito de refletir sobre as relações de gênero em comunidades quilombolas, a pesquisadora Mirian Nobre, integrante da SOF, coordenou durante o Encontro uma mesa de trabalho cujo tema foi Mulheres quilombolas: gênero, modo de vida e sustentabilidade. Na oportunidade, a pesquisadora buscou introduzir o debate mais amplo sobre o desenvolvimento e sua relação com a sustentabilidade e gênero.

As informações estão sendo enviadas via e-mail e pelo correio.

Nossa amostra na pesquisa realizada foi de 10 mulheres da região Nordeste, 2 do Norte, 1 sudeste e 2 do Centro-oeste. Foram entrevistadas 15 mulheres do universo total de 69. Um dado que precisa ser destacado é o peso da região Nordeste na amostra, dado que das 69 participantes 24 são da região Nordeste, 9 do Norte, 7 do Sul, 19 do Sudeste e 10 do Centro- oeste.
Fazer esse nexo foi possível a partir de profundas mudanças no que se refere à participação das mulheres na elaboração das políticas de desenvolvimento implementadas nos chamados países do Terceiro Mundo. Nessa perspectiva, procurou-se analisar as conseqüências do desenvolvimento nos processos cultural, econômico e político, ocorridas, sobretudo, nesses países.
O que seria, então, desenvolvimento e evolução? Evoluir para onde, para quê e para quem? Em que perspectiva? Desenvolver para construir uma sociedade que tenha condições de consumir mais e mais? É esse o futuro que queremos para nós e nossos filhos? É esse o desenvolvimento que queremos? Provocadas por esses questionamentos, as participantes do Encontro fizeram algumas intervenções que demonstraram como essas concepções de desenvolvimento, construídas nas últimas cinco décadas, e que excluíram as mulheres, secundarizando seu papel como agente social, têm reflexos no nosso cotidiano. As dificuldades das mulheres em assumir uma intervenção política mais sistemática, a dupla ou tripla jornada de trabalho, o trabalho não remunerado e muitas vezes a falta de reconhecimento das atividades que desenvolvem, tudo isso faz parte de uma sociedade em que as relações entre homens e mulheres foram construídas sob condições desiguais de gênero e de raça, tanto econômica quanto política.
Assim, temas como a relação com a família, com o marido, com os filhos; a participação política; o desafio da geração de renda; a dupla jornada de trabalho; as dificuldades de participação em assistência técnica; e o acesso a crédito deram o tom da discussão durante o debate. O fato de encontrarem resistência ao saírem de suas casas para participar de encontros também foi um dos problemas apontados. Os próprios maridos muitas vezes não entendem a importância disso e começam a colocar obstáculos. Algumas mulheres só podem participar desses eventos, principalmente quando ocorre em outro estado, com o pleno consentimento de seus cônjuges.
Dona Antônia Nascimento, da comunidade de Itancoã-Mirin (PA), foi enfática em afirmar que tanto o racismo quanto o machismo de que as mulheres negras são vítimas são imposições da sociedade, fatos que podem ser transformados. Ana Emília dos Santos Moreira, da comunidade de Matões dos Moreira, relatou que está participando de um curso de formação de agentes sobre direitos humanos durante o qual começou a se questionar muito sobre como mudar uma realidade em que, "infelizmente, as mulheres são educadas para obedecer e os homens para mandar".
Poderíamos responder a isso partindo do pressuposto de que a concepção de desenvolvimento imposta é algo construído historicamente e deve ser entendido como uma experiência cultural e singular que não pode ser naturalizada, assim como as chamadas relações de gênero também não podem ser naturalizadas, pois são fruto de uma construção social que precisa ser transformada. Por outro lado, afirmar que é uma construção ou invenção não equivale tachá-las de mentira ou mito. Devemos, isso sim, começar a assumir seu caráter estritamente histórico e diagnosticá-lo como uma forma cultural concreta, marcada por um conjunto de práticas que podem ser questionadas, criticadas, reelaboradas e superadas.
Nesse sentido, as mulheres quilombolas também acham que existe um outro lado: "Chegar até aqui já é uma vitória", afirmou Selma Dealdina, uma jovem quilombola de 23 anos, da comunidade de Angelim, do Estado do Espírito Santo. Com uma voz segura, mas muito emocionada, chamou a atenção para a importância de eventos como esses, pois os obstáculos que as mulheres quilombolas enfrentam são muitos, e poucas ou nenhuma são as oportunidades que as mulheres têm de sair de sua casa e comunidade e poder estar discutindo assuntos como crédito, assistência técnica e estratégias de comercialização de seus produtos, iniciativas importantes para a organização e o empoderamento das mulheres quilombolas. Contudo, as mulheres estão dando conta, pois, das 21 participantes, uma já exerceu o cargo de
vereadora em sua cidade, uma é representante de sua comunidade no Conselho de Desenvolvimento Rural de seu município e a grande maioria faz parte de associações e particularmente organizam as associações de mulheres.
Os impasses e avanços quando o assunto é crédito, assistência técnica e comercialização
No segundo dia do Encontro, tivemos como atividade a discussão sobre as políticas de crédito, assistência técnica e comercialização desenvolvidas pelo MDA, por meio da Secretaria de Agricultura Familiar (SAF) e o PPIGRE.
Temas que eram considerados "coisa de homem" hoje são espaços que, gradativamente, são conquistados pelas mulheres. Entretanto, muitos obstáculos precisam ser derrubados. O depoimento de Kátia dos Santos Penha, da comunidade do Divino Espírito Santo (ES), é contundente: "Eu não entendo, eu tinha todas as condições de acessar o Pronaf. Apresentei todos os documentos necessários, mas o gerente do banco, sem nenhuma razão, não me concedeu o crédito." Os preconceitos são muitos quando as mulheres resolvem acessar o crédito, principalmente se for jovem e solteira. Na maioria das vezes são questionadas: "Será que vai dar conta de pegar o crédito?"
No que diz respeito à produção e comercialização, verificou-se que existe um predomínio de experiências com a venda de produtos agrícolas, mas nota-se uma tendência a conjugar atividades agrícolas e não-agrícolas para a geração de renda. Entre as atividades não-agrícolas está a produção de artesanato e beneficiamento de alimentos. A renda média entre as mulheres que realizam as duas atividades aumenta quase 50% em relação às que só se dedicam à agricultura. Esses dados indicam a necessidade de potencializar essas atividades.
A produção de uma culinária típica, como doces, biscoitos e beijus produzidos e comercializados em feiras e em festivais, mostra que essa é uma atividade que conjuga as atividades agrícolas ao beneficiamento de alimentos, a exemplo do plantio da mandioca, no qual a produção da farinha é base para o sustento familiar. A participação das mulheres se dá em todo o processo produtivo, desde a plantação, colheita, seleção, descasque até o preparo dos ingredientes dos bolos, doces e beijus. O Festival do Beiju, um importante evento para comercialização dos
produtos de mulheres quilombolas no Sapê do Norte (ES), tem sido um elemento aglutinador das comunidades quilombolas dessa região, como nos contou Selma Dealdina, uma das organizadoras do Festival. Em 2005, acontecerá o 3º Festival na comunidade de São Domingos, localizada em Conceição da Barra.
Outro exemplo dessa conjunção é a comunidade Quilombo, de Santa Luzia do Norte, Alagoas, na qual as mulheres estão envolvidas tanto na agricultura quanto em atividades de beneficiamento de alimentos. As mulheres do Quilombo criaram a Associação de Boleiras do Quilombo. "Essa tradição de fazer bolo vem desde os tempos dos cativos. Nos tempos de minha mãe, já se sabia essa forma de fazer grudinho, malcassado, pé-de-moleque, brasileira", conta dona Rosália Romeiro, presidente da Associação e uma das participantes do Encontro.
Durante a discussão sobre as experiências de projetos produtivos empreendidos por mulheres quilombolas, dona Rosália apresentou o Projeto Boleiras do Quilombo - melhoria da produção, gestão e comercialização da culinária da senzala em Santa Luzia do Norte (AL). Um dos objetivos do projeto é fomentar o empreendedorismo e a organização empresarial e social em torno da atividade produtiva da culinária da senzala, mas também se visa promover a transferência e o suporte tecnológico para o desenvolvimento da atividade, adequando-a às leis e normas de fabricação e comercialização de alimentos. Dona Rosália lamenta que o projeto ainda não tenha saído do papel, uma vez que não recebeu nenhum apoio financeiro para sua implementação. São muitos os problemas a serem superados: infra-estrutura inadequada; melhoria do lugar da produção; condições de higiene; certificação e qualificação do produto; e falta de credenciamento pelo Ministério da Agricultura.
De um modo geral, a garantia da segurança alimentar também mereceu destaque. Levantou-se o fato de que essas comunidades precisam desenvolver estratégias que evitem que comercializem o que de melhor possuem em suas hortas e roças e acabem consumindo somente alimentos industrializados, acarretando, em alguns casos, um alto nível de desnutrição e anemia entre seus moradores.
Muitos são os percalços encontrados pelas mulheres quilombolas. As dificuldades vão das péssimas condições de produção (infra-estrutura inadequada) até o momento de comercialização. Por não possuírem certificado de seu produto, ficam impedidas de vender em comércios de maior porte. As barreiras de inserção dos seus produtos são inúmeras, principalmente pela falta de entreposto de venda e de assistência para o aprimoramento dos produtos. Somando-se a isso as péssimas condições de transporte e armazenamento contribuem para a presença de atravessadores na comercialização, pois a maioria das comunidades fica distante dos centros de venda.
Certamente, os dois dias de encontro não foram suficientes para darmos conta da imensa pauta de discussão, sobretudo porque a dívida do Estado com os negros, e com as mulheres negras em particular, é muito grande. A ausência de políticas públicas que levem em consideração a situação das mulheres quilombolas soma-se às dificuldades que ainda existem para aplicar o art. 68 da Constituição de 1988, que garante a essas comunidades a titulação definitiva de suas terras. São direitos ainda a serem implementados pelo Estado, mas, sem dúvida, iniciativas como essa começam a dar visibilidade às comunidades negras rurais e às mulheres quilombolas em especial.
As artesãs tecem com destreza a fibra de caroá e a fibra da bananeira e com o barro moldam utensílios e figuras que retratam mulheres, homens e entidades da natureza. Marcas da cultura material que vêm passando de geração em geração, fazendo valer a luta de Luiza, Marcelina, Antônia, Olímpia, Francisca e tantas outras que conquistaram as "terras de mulheres".
Bibliografia:
ACEVEDO, Rosa; CASTRO, Edna. No caminho das pedras de Abacatal. Belém: UFPA/Naea, 1999.
Cadernos Observatório da Cidadania. V. 1 n. 0. 1999.
ESCOBAR, Arturo. Planejamento In: SACHS, Wolfgang (Org). Dicionário do desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Ed. Vozes.
GUSMÃO, Neusa. Terra de pretos, terra de mulheres: terra, mulher e raça num bairro rural negro. São Paulo: Fundação Palmares, 1995.
SANTOS, Josivan Rodrigues. Conceição das Crioulas: um caso de sucesso. Recife: UFPE, 2004.


Nenhum comentário: